Publicado em 02/08/2018
O BIM – Building Informtion Modeling é tema obrigatório atualmente na construção civil. Todo o mercado se mobiliza em torno dessa novidade com sérios esforços nas áreas profissionais, empresariais e até governamentais. A natureza das iniciativas demonstra a importância do tema em qualquer uma destas esferas de ação. Agrupamentos de profissionais, mobilizações empresariais e regulamentações governamentais se somam no sentido de promover uma transformação na construção civil tida por muitos como sem precedentes na história. Essa é a magnitude do BIM.
Como todo tema complexo, o BIM é às vezes mal compreendido ou interpretado de forma limitada. Isso é natural, pois não se pode exigir que todas as pessoas percebam um tema tão complexo da mesma forma. Não se trata de uma compreensão elementar. Se assim, fosse, não exigiria esforços tão estruturados para sua incorporação na sociedade.
Uma das questões polêmicas, eventualmente de caráter ontológico, recorre ao tradicional questionamento: o que é? Responder o que é o BIM, em função de sua múltipla aplicabilidade nas questões correntes da construção civil, seja no nível operacional, empresarial ou sócio-político, não é tão simples quanto possa parecer. Pretendemos aqui explorar algumas vertentes de significação comumente usadas no jargão profissional a fim de buscar uma compreensão mais profunda e, por consequência, uma resposta mais exata para a questão: o que é o BIM?
Antes de qualquer coisa, é preciso alertar que estas questões de significação exata tendem a ser mais importantes em temas maduros que buscam um refinamento conceitual. Como o BIM é tema recente e em pleno desenvolvimento, buscar a compreensão de sua natureza essencial pode parecer estéril para efeitos práticos. De fato, no atual estágio de desenvolvimento, essa compreensão contribui pouco. Mas é fundamental para o direcionamento dos esforços. Todos já viveram a experiência ou podem imaginar as consequências de pegar a estrada errada numa viagem. Isso ilustra bem o que ocorreria com o BIM se fosse desenvolvido sem a devida orientação quanto a sua natureza essencial.
Ilustrativamente, podemos pensar no que ocorreu com o CAD – Computer Aided Design nas últimas décadas. O CAD surgiu como uma revolução no mercado da construção civil (e em outros também) interpretado como uma forma de substituir ferramentas usuais de projeto (pranchetas, normógrafos, etc.) por um computador. Vale ressaltar que o computador pessoal era recente no mercado. Tínhamos então, uma novidade decorrente de outra que ainda não estava consolidada. Profissionais aderiram gradativamente ao CAD e passaram a usá-lo para substituir as ferramentas usadas anteriormente. Pranchetas viraram peças de decoração. E assim, o CAD foi tratado como uma substituição de ferramentas e ainda hoje é tido por muito como apenas isso.
Mas, como se sabe, usamos dos recursos computacionais que temos à disposição não mais do que uma pequena parcela. Assim é com os diversos softwares que temos à nossa disposição e assim é, por exemplo, com os celulares altamente tecnológicos que carregamos em nossos bolsos. O profissional médio não utilizará mais do que uma pequena parcela da tecnologia que tem embarcada em seu computador pessoal. Essa é a realidade e boa parte dela está no fato de não conhecermos a essência dos recursos que temos à mão e suas possíveis utilizações em nossa atuação profissional.
Há recursos nos softwares que somente podem ser explorados se mudarmos nossa forma de trabalhar e de pensar sobre eles. São recursos disponibilizados não como substitutos de ferramentas antigas, mas como novas possibilidades de organização do trabalho. Ou seja, tirar proveito deles não requer apenas que se passe a usar o software, mas que se reorganize os processos produtivos para que os recursos disponíveis façam sentido. Essa é basicamente a diferença entre a mera automatização e a transformação, uma está focada na eficiência (fazer mais com menos recursos) e a outra está focada em ampliar a eficácia (fazer melhor com novos recursos).
Pensemos, por exemplo, no uso que fizemos de recursos como referências cruzadas (no CAD e em outros softwares, disponíveis há décadas) e compartilhamento em nuvem (disponível há pelo menos uma década, embora de forma não sincronizada). Estes dois recursos são os primórdios do trabalho colaborativo que hoje é tido como novidade no BIM. Na realidade o trabalho colaborativo é novidade para quem usou CAD como mera ferramenta de desenho. Para quem vislumbrou a remodelagem de processos de trabalho com base nesses recursos, a colaboração em BIM é apenas uma evolução já esperada. Mas era preciso compreender o CAD em sua essência e não na sua superficialidade. CAD não é ferramenta de desenho, é um sistema com inúmeras funcionalidades pouquíssimo usadas no mercado. Não estamos falando do uso de comandos de produtividade na modelagem. Falamos de recursos úteis para tornar processos mais eficazes. Talvez por esse uso tímido e desavisado os índices que eficácia dos projetos na construção civil não tenham variado muito entre a era da prancheta e a era do CAD (embora essa análise exija a consideração de outros aspectos que não nos interessam por ora).
E o BIM?
O BIM é uma evolução que aparenta ser mais radical porque pressupõe que tais transformações oriundas do CAD tenham sido implementados. Premissa aparentemente equivocada para a maioria do mercado. Se assim fosse, o trabalho colaborativo era conhecido e nossos processos e profissionais estariam mais aptos ao uso do BIM como uma nova forma de modelagem mais útil para processos mais maduros de trabalho com profissionais que aguardavam essa evolução. Mas, enfim, essa não é nossa realidade. Precisamos, então, de uma transformação maior para que o BIM seja integrado ao nosso mercado da construção civil. Isso explica um pouco a magnitude dos nossos esforços. Teremos que fazer nas próximas décadas, além do trabalho de inserção do BIM, o trabalho de adaptação de processos e de pessoas (profissionais) a uma nova forma de trabalho cuja essência nos escapou nas últimas décadas. BIM, nessa condição, representa uma transformação mais radical e não uma evolução gradativa.
O BIM, do ponto de vista tecnológico, incorpora basicamente três mudanças:
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O tipo de objeto manipulado na modelagem de construções, que agora são pacotes de informações mais complexos
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As condições de relacionamento possível ou aceitável entre os objetos manipulados, nativamente incorporadas aos softwares ou parametrizadas pelos usuários
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A obrigatoriedade de recursos de interoperabilidade entre softwares diferentes, uma espécie de referência cruzada universal
Essas mudanças de caráter tecnológico exigem ajustes na forma das pessoas pensarem a modelagem das construções. Trocam-se objetos matemáticos abstratos (pontos, retas, planos, superfícies) por objetos complexos que representam a realidade com maior precisão. Aproximamos o universo da modelagem do universo real, o que gostamos de chamar de virtualização, embora, como pensa já há décadas Pierre Levy, a virtualização está na abstração da significação e não nos bits da tecnologia. Ou seja, CAD também é virtualização e até mesmo a prancheta carregaria essa possibilidade, dado que qualquer destes meios não dispensa a abstração das significações na mente humana. A partir do pensamento de Levy, talvez a grande diferença promovida pelo BIM seja uma maior possibilidade de construção do conhecimento coletivo, conceito bastante explorado por ele, pela promoção do trabalho colaborativo baseado nas possibilidades de interoperabilidade. Os objetos mais complexos como unidades disponibilizam energia para abstrações mais elaboradas.
Percebamos que os aspectos tecnológicos do BIM potencializam e exigem mudanças substanciais na forma de pensar dos profissionais e conduzem a evolução para um aspecto interacional no campo social, mesmo que restrito ao contexto profissional e intermediado por tecnologias, na construção de um conhecimento coletivo. Estamos falando de transformação social, ainda que com epicentro no universo profissional da construção civil, mas com reflexos perceptíveis no conhecimento coletivo que molda a sociedade. Obviamente, este fenômeno oriundo do BIM é ainda embrionário, até mesmo porque o próprio BIM também é.
Essa aproximação da modelagem computacional com a realidade das construções evidencia a possibilidade de novos mecanismos de interação entre ambos, o que o BIM tem colocado como futuro imediato. A inserção de recursos tecnológicos no uso das informações modeladas no canteiro de obras é um dos canais que promovem as mudanças de relações entre estes dois contextos. Por mais que sejam relações profissionais, não deixam de ser sociais e não se pode deixar de avaliar as consequências potenciais dessa transformação. A exigência de adaptações dos profissionais em ambos os contextos para que ocorra esta interação, são primórdios da transformação do conhecimento coletivo. Não é difícil perceber que o BIM promove um alinhamento em torno da construção entre modelagem (projeto, virtual) e obra (realidade) construído num nível de conhecimento mais elevado que o tradicionalmente visto. Trata-se da elevação do patamar de conhecimento coletivo no universo da construção civil. Potencialmente o BIM é o agente promotor dessa evolução do conhecimento coletivo.
É claro que esta interação, assim como todas as outras possíveis no processo de construção de um empreendimento, condiciona o estabelecimento de metodologias de trabalho mais adaptadas aos objetos informacionais complexos manipulados e às possibilidades (ou necessidades) de interoperabilidade e interação. Os aspectos tecnológicos do BIM condicionam os procedimentos de trabalho. Talvez por isso, muitos profissionais tendam a pensar o BIM como uma mudança de metodologia de trabalho, o que se tem referido no mercado como “metodologia BIM”.
Ora, a metodologia de trabalho é consequência da forma de estruturar o pensamento ou os processos de construção da significação. Metodologias orientam sobre como fazer coisas, mas não se confundem com as coisas em si. Logo, uma metodologia pode orientar sobre como fazer as coisas usando a forma de modelar ou de interagir do BIM, mas ela não se confunde com o BIM. Poderíamos dizer que o BIM permite definir metodologias de trabalho, mas não podemos dizer que ele, em si, seja uma metodologia.
Admitir que BIM seja metodologia é admitir que ele não agrega conhecimento, pois as metodologias orientam sobre como fazer as coisas aplicando conhecimentos previamente sistematizados. Como o BIM muda a forma de lidar com as informações da construção (e até mesmo de gera-las) e promove o estabelecimento de um novo patamar de conhecimento coletivo, ele é de fato um nicho de conhecimento. Mas, evidentemente, podemos pensar que a partir do conhecimento atrelado ao BIM é possível estabelecer não uma, mas diversas metodologias para realizar trabalhos diferentes. Podemos classificar diversas metodologias com o rótulo de metodologia BIM por usarem o conhecimento atrelado ao BIM, mas não podemos classificar o próprio BIM como metodologia apenas, pois o tornaria estéril em termos de formulação de novos conhecimentos no universo da construção civil.
Como promotor de uma nova realidade, poderíamos pensar no BIM como paradigma, mas para isso seria preciso compreender o significado deste termo. Paradigma é um termo bastante usado nas últimas décadas em função das diversas mudanças por que passou nossa sociedade e nossa forma de estruturar nossos pensamentos. Mas esse uso, levado a um universo relativamente leigo, torna os termos um tanto voláteis e os significados passam a variar conforme o contexto, precisamos resgatar o termo para avaliar sua adequação.
Etimologicamente paradigma tem o sentido de modelo ou padrão, coisa que serve de referência para ser seguido. O termo foi utilizado em importantes obras em diversas áreas do conhecimento para significar coisas que, embora sigam esta diretriz de significação, podem variar ligeiramente. Mas a essência do significado permanece até os dias de hoje.
O sufixo grego “para” indica estar ao lado, ou próximo de. Ou seja, paradigma deve indicar algo que está ao lado exatamente para que seja seguido, sirva de referência ou padrão.
O termo paradigma foi usada por Ferdinand de Suassure (pai da linguística) para denominar um aspecto estrutural da linguagem que faz com que certas palavras (ou signos) devam ser selecionados em relação a outros. Por exemplo, se usamos um substantivo masculino, devemos usar adjetivos também masculinos. Essa seleção possível de palavras foi denominada paradigma, indicando que há uma relação lógica entre elas. O paradigma estabelece regras para a organização da linguagem no que se refere à seleção relativa de palavras (objetos) para a construção de mensagens. Apenas complementando, a construção que se faz no intuito de desenvolver a mensagem associando ideias inicialmente desconexas é o sintagma. A relação que podemos construir entre o sujeito e o predicado numa sentença é sintagmática (de onde vem a análise sintática das sentenças). O importante aqui é perceber que o paradigma, na linguística, é o que permite que várias palavras ou ideias sejam relacionadas entre si de forma coerente umas com as outras. Não seguir a relação paradigmática torna a sentença sem sentido ou linguisticamente errada. Já o sintagma carrega a intenção de quem escreve ou fala. Ou seja, é o paradigma que define com o que podem ser preenchidos os campos de uma relação sintagmática. Se a relação sintagmática é logicamente possível, o conteúdo dela deve atender relações paradigmáticas.
Se o BIM for um paradigma, nesse paralelo com a linguística, ele deve definir com o que podemos construir as relações do que pretendemos modelar. Ou seja, o BIM deve estabelecer quais objetos podem aparecer numa relação, ou quais objetos são passíveis de seleção para uso conjunto. Apenas para relembrar, enumeramos a pouco entre as mudanças trazidas pelo BIM a seguinte: as condições de relacionamento possível ou aceitável entre os objetos manipulados, nativamente incorporada aos softwares ou parametrizadas pelos usuários.
Mas essa analogia com a linguística de Suassure ainda não cobre todo o significado do que hoje devemos entender por paradigma.
Posteriormente, Tomas Kuhn retomou o termo paradigma em sua obra “A Estrutura das Revoluções Científicas”, em 1962. Nesse contexto, Kuhn esclarecia que, como realizações, o termo paradigma não precisaria referir-se necessariamente a algo notável, mas o que o caracterizaria seriam: 1- algo “suficientemente sem precedente para atrair um grupo duradouro de partidários” e 2- algo que possuísse questões em aberto para serem resolvidas, em torno das quais um grupo de pesquisadores se reuniriam. No sentido amplo, um paradigma estabelece uma espécie de modelo mental em torno do qual uma comunidade se posiciona e segundo o qual as pesquisas são desenvolvidas. O paradigma é o conjunto de elementos que esta comunidade compartilha e em torno do qual estabelecem suas comunicações e compreensões. O paradigma direciona (ou condiciona) a montagem do quebra-cabeça da ciência normal.
Troquemos o contexto científico pelo contexto da construção civil e teremos praticamente um retrato do atual estado de coisas em relação ao BIM.
O próprio Kuhn reconheceu posteriormente (num artigo de de 1974) que a popularização do termo paradigma tornou-o confuso, pois várias foram as significações atribuídas a ele. Na obra de 1962, nas várias análises realizadas, os períodos de mudança de paradigma foram descritos como períodos que davam espaço à confusão exatamente por deixarem vazios alguns pontos necessários para a estruturação do pensamento e dos processos de pesquisa. Contudo, à medida que o novo paradigma substitui o anterior, a organização retorna, porém em um novo patamar ou numa nova ordem. Não é à toa que essa mudança de paradigma tem relação com o conhecimento coletivo que citamos a pouco baseados no pensamento de Pierre Levy.
Enfim, de forma relativamente rápida e mesmo sem o devido rigor científico, a impressão que temos é a de que o BIM deve ser caracterizado como paradigma, pois as modificações que vem produzindo na mobilização de profissionais, na reestruturação das formas de pensar ou modelar baseadas em outra classe de objetos fundamentais, nas reestruturação de processos de trabalho/pesquisa e no estabelecimento de um novo estágio de conhecimento coletivo parecem não deixar margem suficiente para não admiti-lo como tal.
O fato de não ser ainda disseminado e entendido como padrão de mercado não muda sua natureza e apenas demonstra o quão inicial é o estágio dessa transição. Vivemos hoje exatamente o processo de substituição de um paradigma na construção civil por outro que certamente marcará e sustentará uma séria de avanços posteriores em toda a estruturação do conhecimento e dos processos de produção nesta área. Tipicamente o resultado gerado por um paradigma.
Sobre o autor:
Renê Guimarães Ruggeri. Formado em Engenharia Civil, MBA em Gestão de Projetos, Especialista em Gestão de Empresas, 20 anos como Coordenador de Projetos AEC, autor dos livros “Redescobrindo o Processo do Projeto” (2015) e “Gerenciamento de Projetos no Terceiro Setor” (2011), Eng. Máster Coordenador de Projetos na Vale S/A (2011-2015), Professor da Academia Militar de MG no CFOBM (2003-2010), Diretor de Projetos da FEOP(2006-2008), participação em mais de 100 Projetos AEC de variados portes e tipologias (1995-2015), Instrutor, palestrante e escritor nas áreas de Engenharia de Projetos e Gestão de Projetos. Atualmente é Sócio-Proprietário da Renê Ruggeri Engenharia e Consultoria e atua com Gestão de Empreendimentos com foco em Gestão de Engenharia. Email de contato: rgruggeri@gmail.com. Site: https://www.reneruggeri.com/
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